Crítica | Apocalipse nos Trópicos
Novo filme de Petra Costa evidencia jogo político de lideranças evangélicas e marca evolução narrativa da diretora
É justo encarar “Apocalipse nos Trópicos”, novo filme de Petra Costa, como uma espécie de continuação do seu trabalho anterior, “Democracia em Vertigem” (2019). No segmento inicial, a diretora retorna para 2016, ano do impeachment de Dilma Rousseff, para se atentar a algo que até então lhe passava despercebido: a forte presença e influência da ala evangélica na política brasileira.
Depois de ter sua première no Festival de Veneza, na Itália, e passar pelo Festival do Rio neste mês, o documentário “Apocalipse nos Trópicos” está em exibição na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Um dos questionamentos levantados logo de cara é: “quando uma democracia termina e uma teocracia começa?”.
Tal dúvida permeia boa parte da narrativa, que prioriza o olhar estratégico da ala evangélica para ganhar espaço no tabuleiro político nacional. Neste contexto, não há como negar que a principal “estrela” do filme é o pastor Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo. A equipe de Petra Costa teve acesso privilegiado a um dos principais estrategistas dos evangélicos, conduzindo uma série de entrevistas ao longo do Governo Bolsonaro, passando por momentos marcantes como o 7 de Setembro de 2021 e o período eleitoral de 2022.
É importante esclarecer que a intenção de “Apocalipse nos Trópicos” não é ser um estudo sobre a personalidade e anseios dos evangélicos. A ideia é retratar o jogo político, que mira os Três Poderes, como evidenciado por toda a sequência que acompanha a indicação do ministro André Mendonça para o Supremo Tribunal Federal (STF).
Até há personas “do povo” para ajudar a audiência a compreender como os políticos do grupo influenciam, difundem fake news e trabalham numa certa binaridade: o que está errado na sua vida é influência das “forças das trevas” (literalmente falam isso), a salvação é Jesus. Uma injeção de esperança, indolor e que dá algo que muitas pessoas buscam: sentido na vida.
É um discurso fácil, furado, mas acessível, que chega nos rincões do país e atinge uma parcela significativa da população que o Estado e a esquerda ainda não conseguem atingir. O baixo desempenho de Guilherme Boulos na periferia de São Paulo no primeiro turno das eleições deste ano, em especial com o empreendedor/autônomo da periferia, é sintomático, mas não surpreendente.
Quando o fundamentalismo se enraíza, ganha contornos de “guerra santa”. Existe um contraponto no filme, representado por um grupo evangélico que não concorda com o teor fundamentalista, mas que recebe apenas cinco minutos de tela; um outro aceno na retina final do filme apenas ilustra que “nem todo evangélico é de direita”. Fica clara que a intenção do documentário era, de fato, mirar o alto escalão.
Nenhuma informação que Petra Costa traz neste filme é uma revelação ou surpreende quem acompanha o cenário político de perto. No entanto, “Apocalipse nos Trópicos” mostra um amadurecimento da cineasta em termos narrativos. Ela tem controle completo da história que quer contar e se mantém mais centrada em estabelecer “fatos”, e a audiência pode concordar ou não com sua interpretação da realidade.
Em “Democracia em Vertigem”, uma cena que gerou memes na época foi a análise de Petra sobre a postura corporal do ex-presidente e golpista Michel Temer durante a posse de Dilma no segundo mandato. Era uma visão quase poética da diretora para tentar explicar o que viria a seguir. Apesar de interessante enquanto exercício narrativo, é frágil do ponto de vista dramático e carrega tons de prepotência.
Por outro lado, “Apocalipse nos Trópicos” traz um momento similar, mas muito mais assertivo: a diretora volta uma cena do discurso de Bolsonaro no 7 de Setembro para mostrar como Malafaia parecia saber exatamente o que o presidente diria, dizendo as palavras antes dele e evidenciando o quanto o pastor tinha influência sobre o tom adotado pelo governo.
Não, Bolsonaro não era um fantoche de Malafaia, mas aceitou de bom grado o posto de “escolhido e ungido por Deus” para representar e arrecadar votos evangélicos; outro ponto a se elogiar da narrativa montada por Petra. De novo, focada em “fatos”, por assim dizer.
Como dito anteriormente, Malafaia é a grande atração do longa e o responsável por algumas das declarações mais esdrúxulas que veremos no cinema nacional este ano. A forma crua e violenta como se dirige aos opositores carrega um quê de teatralidade. O pastor sabe a orientação política da cineasta e joga seu jogo, respaldado pelos quase 30% da população evangélica brasileira, como gosta de frisar.
Política é um grande teatro. Malafaia sabe disso. Qualquer político sabe disso. É um jogo que todos estão dispostos a jogar, como evidenciado no segmento que acompanha o presidente Lula durante as eleições de 2022.
Todo esse cenário é costurado quase cronologicamente, o que enfraquece o filme em alguns momentos, já que o desenrolar da crise (culminando no 8 de Janeiro de 2024) está muito fresco na memória de todos (ao menos, dos brasileiros). Mesmo assim, há uma elegância na forma como a diretora amarra a narrativa com as interpretações bíblicas, especialmente do livro do Apocalipse, essencial para compreender as motivações dos setores fundamentalistas.
“Apocalipse nos Trópicos” é um retrato das ambições de líderes evangélicos. Mais do que tudo, soa como um lembrete incômodo: neste momento da história, não há como governar este país sem dialogar (e atender) anseios religiosos.
Nota: 4 de 5.
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