Crítica | Até que a Música Pare
Cristiane Oliveira segue explorando o interior do Rio Grande do Sul em filme sobre luto, moral e espiritualidade
Assim como havia feito em seus dois primeiros longas, a diretora Cristiane Oliveira segue explorando o interior do Rio Grande do Sul em “Até que a Música Pare”, que estreia nesta quinta-feira (03/10) no circuito comercial. No entanto, diferentemente de seus trabalhos anteriores, “Mulher do pai” (2016) e “A primeira morte de Joana” (2023), que focavam em personagens mais jovens, agora a cineasta vai para o lado oposto.
Na trama, depois que o último filho sai de casa, Chiara (Cibele Tedesco), matriarca de uma família descendente de italianos, decide acompanhar o marido, Alfredo (Hugo Lorensatti), em suas viagens como vendedor pelos botecos da Serra Gaúcha. Uma tartaruga e baralhos de carta colocarão à prova mais de 50 anos de vida a dois.
Para quem se interessa por linguística, o grande atrativo do filme é o fato de ser rodado quase inteiramente no idioma Talian, língua brasileira surgida da mistura do português com os dialetos dos imigrantes que vieram do Norte da Itália para o Brasil. Por conta disso, o longa foi filmado em quatro cidades da Serra Gaúcha nas quais o idioma está presente: Antônio Prado, Veranópolis, Nova Roma do Sul e Nova Bassano.
Para além de uma decisão de produção, a presença do Talian é importante por dois motivos. Primeiro e mais óbvio por conta das intenções do roteiro, que promove choques culturais e linguísticos entre as personagens. E segundo porque mantém uma marca importante da obra da diretora, que é a de trabalhar histórias que se passam longe dos grandes centros urbanos, o que dá vazão a discussões de cunho moral em ambientes conhecidos por serem conservadores.
Neste contexto, a protagonista, uma senhora católica, está tentando lidar com a morte do filho Marco, que era formado em Filosofia, professor universitário, e não compartilhava da fé cristã da família. Tal elemento provocava brigas familiares, especialmente do filho com o pai. Em um desses episódios, o jovem saiu de casa e sofreu um acidente que o vitimou.
A resistência do esposo em aceitar que o filho pensava diferente é o estopim para que Chiara comece a questionar se só pode haver uma visão de mundo a partir do prisma religioso. As “provocações” trazidas pelo budismo – apresentado pelo namorado italiano de uma jovem da comunidade - leva a mulher a pensar que o filho falecido pode estar, de alguma forma, na tartaruga que o marido comprou para lhe fazer companhia.
Para ficar mais próxima dele (a), Chiara começa a acompanhar o esposo em suas entregas pela região, o que causa mais um choque: Alfredo comete crimes. Compra produtos sem nota fiscal, não está em dia com as declarações de Imposto de Renda e, para piorar a situação, não parece se importar com nada disso.
Ao mesmo tempo, o homem demonstra descontentamento com o noticiário político porque um deputado conservador do qual gosta está sendo “perseguido” pelas autoridades, que descobriram uma série de crimes.
Se a atitude e as convicções de Alfredo são reprováveis do ponto de vista moral e até mesmo criminal, isso significa que o homem também pode estar errado em relação às suas crenças? Do que vale ser cristão se comete crimes sem demonstrar nenhum pingo de remorso? E além disso tudo: faz sentido o céu católico existir?
É nessa dualidade entre teoria e prática que “Até que a Música Pare” encontra seus melhores momentos. Cibele Tedesco é uma excelente atriz e constrói uma personagem complexa, que busca se impor, da forma que pode, para enfrentar os dilemas que invadiram seu lar e lhe tiram o sono à noite. A dificuldade para dormir e o desconforto quase fantasmagórico que sente são elementos simbólicos dessa necessidade de mudança.
Apesar dos bons momentos, este é o filme mais simples da diretora em termos de forma, que se mostra um tanto rígida demais na condução de algumas cenas. Em “A primeira morte de Joana”, havia um esforço técnico para criar raccords gráficos e sonoros, por exemplo, o que dava um toque sensorial às descobertas da protagonista. Já “Mulher do Pai” abusava de planos longos, proporcionando a sensação de estar “longe demais das capitais” que tão bem faz ao filme.
“Até que a Música Pare” é extremamente ordinário nos aspectos técnicos. Os planos abertos apenas registram os caminhos percorridos pelo casal, sem nenhuma grande cena. Não era um filme que demandava algo do gênero, mas Cristiane Oliveira é o tipo de diretora que consegue entregar planos mais elegantes.
Ainda assim, o longa consegue trabalhar temas como luto, crise moral e espiritualidade sem pesar a mão em nenhum deles. Há uma certa leveza – e até humor – que permeia toda a narrativa, beneficiando a trama.
Nota: 3 de 5.
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