Crítica | Estranho Caminho
Com elementos de realismo fantástico, longa de Guto Parente brilha pela universalidade do tema e relembra traumas da pandemia
Ao mesmo tempo em que as convenções do cinema narrativo estão presentes em “Estranho Caminho”, o diretor cearense Guto Parente brinca com o realismo fantástico e flerta com o cinema experimental, sem se preocupar com qualquer didatismo, o que dialoga diretamente com a trama.
Afinal, o protagonista é um jovem cineasta que faz filmes experimentais. “Não tem muita história, não”, admite durante uma conversa com amigos.
O filme chegou ao circuito comercial nesta quinta-feira (01/08). Antes, no Festival de Cinema de Tribeca de 2023, nos Estados Unidos, conquistou os prêmios de Melhor Filme, Melhor Direção, Melhor Ator (Carlos Francisco) e Melhor Fotografia.
A história segue David (Lucas Limeira), um cineasta que volta para Fortaleza, sua cidade natal, para exibir seu primeiro longa-metragem num festival. No entanto, é surpreendido pelo rápido avanço da pandemia de Covid-19 e decide encontrar seu pai, Geraldo (Carlos Francisco), com quem não fala há mais de dez anos.
É a partir desse encontro que o filme começa a apresentar elementos de realismo fantástico. Rapidamente é estabelecido que existe algo de “sobrenatural” rondando a vida dos personagens, o que é tratado como um mistério pelo roteiro até a reta final. A forma como tal segredo é preservado se relaciona com o que o próprio protagonista pensa sobre cinema.
No início do filme, David vê o pai andando pela rua, à noite, carregando uma porta numa espécie de carriola. Ao virar uma esquina, o protagonista encontra a porta parada no meio da rua, sem ninguém próximo. A câmera nos aproxima da fresta que há na parte superior do objeto. No entanto, a cena corta e a montagem já nos leva de volta para a vida “ordinária” de David, sem explicar o que vimos anteriormente.
O exemplo acima sintetiza bastante a ideia de que o fantástico será um elemento acessório para desenvolver os principais temas do filme, mas que não devemos esperar grandes explicações ou coesão em termos de ação e reação. Nem todos os elementos narrativos se conectarão porque não é esse o objetivo.
O cerne de “Estranho Caminho” é a não relação entre pai e filho e a busca por um meio para reestabelecer conexão. Conforme a trama avança, David descobre que o pai era escritor de livros que beiram a autoajuda, nos quais dava conselhos e até dicas sobre como se relacionar com os filhos. O que é irônico, já que o homem não conseguia se abrir com o próprio filho.
Ao contrário do que se poderia esperar, David não reage com raiva, mas acha graça. Não há um ímpeto do jovem em “tirar satisfação” com o pai pelos anos perdidos, mas sim o de tentar salvar algo da relação.
Não é um objetivo primário, mas algo implícito no modo como David tenta entrar no mundinho do pai. Vivido brilhantemente pelo ótimo Carlos Francisco, o homem mais velho sempre se esquiva, especialmente quando perguntando sobre o trabalho. “São coisas minhas”, resume, numa atuação séria e, ao mesmo tempo, cômica. Já a interpretação de Lucas Limeira – que brilhou em “Cabeça de Nêgo” (2020) – traz uma dose de ternura extremamente necessária ao protagonista.
A grande virada do roteiro, sobre o pai estar morto há três anos, não é exatamente surpreendente, mas ajuda a justificar a aura de mistério que atravessa o longa. Num primeiro momento, é uma decisão que poderia enfraquecer o debate sobre a dificuldade de conexão.
Porém, o realismo fantástico abre um mar de possibilidades, no qual a audiência pode escolher a opção que melhor lhe agradar: realidade paralela, encontro espiritual e por aí vai. A ideia essencial é de que aquelas duas pessoas, de alguma forma, conseguiram finalmente conviver.
“Estranho Caminho” ressoa de forma comovente pela universidade do seu tema. É, ainda, um lembrete das dificuldades, medos e traumas causados pela Covid-19, que impossibilitava o contato e nos deixava praticamente inertes.
A cena do hospital em que David descobre que não era seu pai que estava internado potencializa a sensação de vazio do protagonista, essencial para conectar todas as pontas da trama. No fim do dia, é cinema narrativo, mas com um pezinho no fantástico.
Nota: 3,5 de 5.
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