Crítica | Rio Doce
Filme de estreia do diretor Fellipe Fernandes discute a ausência no núcleo familiar, ao mesmo tempo em que desconstrói a idealização de memórias
Depois do premiado curta-metragem “O Delírio é a Redenção dos Aflitos”, o diretor pernambucano Fellipe Fernandes faz sua estreia em longas-metragens com “Rio Doce”, que chega aos cinemas do país nesta quinta-feira (20). Vencedor do prêmio principal do festival Olhar de Cinema de Curitiba em 2021, o filme discute as diversas ausências dentro de um núcleo familiar, ao mesmo tempo em que desconstrói a idealização de memórias.
Na trama, acompanhamos Tiago (Okado do Canal), um trabalhador da periferia de Olinda, região metropolitana de Pernambuco, que está com dificuldades para se sustentar financeiramente. Prestes a completar 28 anos, ele acabou se tornando um pai ausente para a filha pequena, viu sua companheira se afastar e não parece conseguir esboçar nenhuma reação. No entanto, uma revelação sobre a identidade do seu pai, e o descobrimento de suas meias-irmãs, vai modificar sua rotina.
A sequência de abertura se passa na praia, com pessoas tendo momentos felizes. Em dado momento, a câmera corta para Tiago, que está apático, com o peso do mundo nas costas, e entendemos que estávamos diante de uma câmera subjetiva. Para um filme de estreia, é um trabalho impressionante.
O diretor opta pelo uso da câmera subjetiva em diversos momentos, pois há o interesse em trabalhar a forma como o protagonista enxerga e percebe o mundo ao seu redor. Tiago claramente precisa colocar a “cabeça no lugar”, mas não consegue.
Esse estilo de filmagem voltará em momentos-chave, demonstrando como a visão de Tiago vai se modificando com o passar do filme, em diversos contextos: a observação do próprio bairro, uma festa em família, um sonho febril.
Um dos principais temas trabalhados em “Rio Doce” é a ausência, mas não apenas a provocada pelo pai de Tiago, totalmente alheio aos núcleos familiares nos quais se envolveu. Há um subtexto muito forte sobre como esse vácuo emocional interfere nas relações sociais e é reproduzido de forma geracional. É a ausência de algo que, em tese, deveria estar lá, mas nunca esteve, e nos ajuda a entender os motivos que levam Tiago a dizer que se sente estagnado na vida.
Ainda que a narrativa seja linear, temos alguns momentos de quebra dessa linearidade, permitindo que o público sinta o peso de determinados eventos. O filme não opta por um tom melodramático e aposta na sutileza, construindo as relações através dos diálogos e de alguns belos momentos de flashbacks, com o uso de fotos do passado dos personagens.
A questão das lembranças é, facilmente, o ponto mais interessante de “Rio Doce”. O que vemos em tela é a desconstrução de qualquer tipo de idealização de memórias. Em dado momento, Tiago visita a casa em que o pai morou, e observa as fotos que o mesmo tirou com sua família “de verdade”. É um momento importante para que, lá na frente, o roteiro (também assinado pelo diretor) evidencie o quanto esses fragmentos de memória podem ser ilusórios e infiéis do ponto de vista emocional de quem os viveu.
A expressão de desolação no rosto do protagonista é uma constante em quase todo o filme, fruto da ótima atuação do rapper Okado do Canal. O ator consegue transmitir o cansaço, físico e emocional, que impede Tiago de reagir. É uma atuação que começa sutil, introspectiva, mas evolui e se torna mais complexa.
O trabalho de fotografia assinado por Pedro Sotero é outro trunfo. Logo no início, há um plano conjunto que contrapõe a área mais nobre de Olinda com a periferia. Tiago está no quadro, voltando do trabalho e indo para casa. Naquele momento, não temos ainda conhecimento da extensão dos problemas pelos quais o protagonista está passando, mas a cena já nos prepara emocionalmente para a transição, potencializada pela direção de arte de Thales Junqueira.
Ainda que os temas sejam pesados, “Rio Doce” conta com momentos inesperadamente divertidos. Nem tudo é fruto de algo pesado emocionalmente, como o motivo pelo qual Tiago tem dores nas costas. Porém, devido ao momento emocional do protagonista, coisas simples de se resolver se tornam complexas justamente pela inércia dele.
Mérito do roteiro de Fernandes que, apesar da qualidade, coloca algumas pistas que nunca são desenvolvidas. Há buracos dramáticos que servem apenas para contextualizar a realidade de Tiago. Incomodam, mas são perdoáveis em virtude de tantos outros elementos habilmente desenvolvidos, que fazem de “Rio Doce” um dos grandes lançamentos do ano no cinema nacional.
Nota: 4 de 5.
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