Crítica | Sem Coração
Sustentado por elenco promissor, longa transita entre momentos leves e situações tensas para abordar desejos e inseguranças da adolescência
É justo pensar que a verdadeira protagonista de “Sem Coração” é a vila pesqueira na qual a história se passa. Nem sempre o protagonista do filme é uma pessoa ou um ser senciente. A cidade ou o local retratado pode exercer o papel principal para desenvolver as ideias e intenções dos realizadores. Temos diversos exemplos conhecidos e populares, como “Meia Noite Em Paris” (a cidade de Paris como protagonista), e de filmes nacionais, como “Carandiru” (a prisão).
“Sem Coração” teve sua première mundial na seção Horizontes do Festival de Veneza, na Itália, em 5 de setembro. O longa é dirigido pela dupla Nara Normande e Tião e já desembarcou nos festivais brasileiros, com exibições no Festival do Rio e na 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
O longa amplia o curta-metragem de mesmo nome, realizado pelos diretores em 2014. Durante o verão de 1996, na praia de Guaxuma, no litoral de Alagoas, Tamara (Maya de Vicq) está aproveitando as últimas semanas no local onde mora antes de partir para estudar em Brasília. Um dia, ela ouve falar de uma adolescente apelidada de Sem Coração (Eduarda Samara) por causa de uma cicatriz que tem no peito. Ao longo do verão, Tamara sente uma atração crescente por essa menina misteriosa.
Ainda que tenhamos duas personagens centrais para a condução da narrativa, é a vila pesqueira que realmente exerce o protagonismo. Para além das meninas, acompanhamos um grupo de crianças e adolescentes que vivem no local. A interação entre eles não é impactada por classes sociais e não há um julgamento moral em relação às decisões que cada um toma, o que é revigorante. Os prazeres e as limitações de se estar em um ambiente tranquilo e afastado das metrópoles influenciam na vida de cada um deles de formas diferentes. Em menor ou maior grau, todos possuem algum desenvolvimento ao longo do filme.
Galego (Alaylson Emanuel), por exemplo, é um adolescente bad boy, mas de bom coração. É famoso na ilha por já ter passado pela Fundação Casa (na época, Febem) e, portanto, paga de destemido. No entanto, parte dessa atitude é fachada para esconder os problemas com o pai e os traumas vividos no confinamento.
Todavia, o grande tema do filme acaba sendo o despertar sexual e está presente na dinâmica entre Tamara e Sem Coração. Isso se dá tanto de forma metafórica (com o aparecimento de uma baleia encalhada na praia e dos sonhos que as garotas começam a ter) quanto física. Tamara ainda está descobrindo suas preferências sexuais e, em dado momento, assisti a uma cena pornô entre duas mulheres, o que lhe gera interesse.
Já Sem Coração se relaciona sexualmente com alguns meninos da ilha, mas sem um vínculo emocional. Tal distanciamento não se dá apenas no sexo. A garota não integra o grupo de jovens da ilha, não tem amigos e pensa em se tornar pescadora, assim com seu pai. As coisas começam a mudar de figura quando ela é procurada por Tamara, que está intrigada com a jovem e quer entender o motivo do apelido.
A atuação de Maya de Vicq como Tamara é uma das grandes atrações do filme. A garota vive um momento de incertezas, receosa em se mudar para Brasília. Durante boa parte do tempo, a expressão da atriz é carregada de uma introspecção angustiante, refletindo a tristeza e os dramas internos da personagem, ao mesmo tempo em que há a curiosidade gerada pelo despertar sexual.
Em uma das cenas mais emocionantes, Tamara pergunta a sua mãe, Fátima (Maeve Jinkings), se é normal ter medo de algo que se quer muito, o que faz com que a mulher reflita por alguns segundos antes de confortar a filha. Em termos de forma, a cena se assemelha com alguns momentos de “Aftersun” (2022), onde a personagem mais nova ainda não tem vocabulário/vivência para expressar seus sentimentos. Já o personagem adulto compreende as entrelinhas e a amplitude que aquelas palavras carregam.
Perceptível, também, que o longa acena para o que viria se tornar a extrema direita brasileira contemporânea. Um dos personagens adultos é um homem casado, antidrogas, moralista, mas que tem diversas fitas VHS pornográficas, com os mais variados tipos de fetiches (incluindo religiosos). De quebra, anda com uma arma de fogo na cintura. Contudo, ele se segura quando pensamos que poderia ter uma reação violenta. Naquela época, esse povo estava dentro do armário, mas perderam a vergonha e deram as caras nos últimos anos, amparados por um governo que flertava constantemente com o fascismo.
Com establishing shots belíssimos e uma ótima movimentação de câmera, o filme peca apenas por algumas decisões de montagem. A fluidez é comprometida quando temos momentos oníricos, pois a transição para eles é abrupta e não dão sequência para o que estava sendo visto anteriormente. Em última análise, é algo que poderia ter sido abordado de uma forma mais orgânica ainda no roteiro.
Retratando um microcosmo tão interessante, “Sem Coração” é atual sem ser anacrônico com o período abordado. Sustentado por um elenco promissor e com bons alívios cômicos, o longa transita entre momentos leves e situações tensas, sem nunca pender demais para nenhum dos lados.
Nota: 4 de 5.
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