Crítica | Zé
Longa conta a história de José Carlos da Mata Machado e mostra a luta contra a ditadura militar num contexto de clandestinidade
A memória de um país está sempre em disputa, ainda mais naqueles que sofreram com ditaduras militares. Manter fresco os horrores do período para que não se repitam é essencial, especialmente por meio da arte.
Infelizmente, o nosso cinema produziu poucas obras sobre a ditadura militar quando comparado com outros países da América Latina, tanto em volume quanto em variedade de estilo. Portanto, é de se celebrar que, em agosto de 2024, tenhamos três obras abordando a ditadura com diferentes perspectivas.
Depois de “O Mensageiro” (leia a crítica aqui) e “Entrelinhas”, chega aos cinemas “Zé”, dirigido pelo mineiro Rafael Conde. O filme teve passagem por festivais e entra em cartaz no circuito comercial nesta quinta-feira (29/08).
Baseado em fatos reais, o longa conta a história de José Carlos da Mata Machado, o Zé (Caio Horowicz), líder do Movimento Estudantil Brasileiro e membro de um grupo de resistência contra a ditadura militar no Brasil. Perseguido, deixa o conforto de uma vida burguesa para trabalhar com alfabetização e conscientização política no interior do nordeste, na clandestinidade.
Um dos méritos do filme é mostrar a luta contra o regime militar em diversas partes do Brasil, saindo do já tão conhecido eixo Rio-São Paulo. Tal aspecto é essencial para derrubar narrativas sobre uma suposta “vida tranquila” que os militantes levavam.
Quem não tinha condições de se exilar no exterior vivia na clandestinidade, tentando organizar o movimento. Era uma vida de medo e insegurança constante, como pontuada numa cena na qual Lena (Eduarda Fernandes), companheira de Zé, relata que foi abordada por uma prima no supermercado. Assustada, a mulher pediu para que a parente fingisse que não a tinha visto.
Quando havia risco de serem descobertos, era necessário mudar de cidade. Zé, Lena e o filho pequeno deixam São Paulo e partem para o interior do Ceará, onde tentam manter viva a luta contra o regime. Havia uma aposta muito clara em conscientizar a população - especialmente os trabalhadores - da necessidade de se politizarem para reivindicarem não só um país melhor, mas condições de trabalho mais dignas.
A bela cena na qual Zé dialoga e ensina trabalhadores faz uma rima temática com um flashback anterior, no qual o pai do dele, o jurista e ex-deputado Edgar da Mata Machado, aparece lecionando sobre direito. O próprio Zé, que chegou a cursar direito, aponta para seu pai as contradições entre teoria e prática.
As diferenças entre Zé e Edgar são importantes porque ambos querem a mesma coisa, a queda da ditadura, mas possuem perspectivas e modos bem distintos para atingirem tal objetivo. O protagonista é frequentemente questionado - por diferentes pessoas - sobre qual o sentido em ficar na clandestinidade em vez de buscar alternativas mais seguranças, como se exilar na Europa.
“Deixar o país agora é aceitar a derrota”, responde Zé, que acredita que estar próximo do povo é a única forma de mudar o Brasil.
Permanecer no país é um dos pontos de discordância entre Zé e Lena, que está preocupada com a segurança dos dois filhos (o mais novo, fruto do relacionamento com Zé). Aqui entra outro elemento importante da dificuldade da clandestinidade: abrir mão dos filhos.
Quando Zé convence a companheira a enviar as crianças para a casa dos seus pais, temos o sinal mais evidente de que o relacionamento entre os dois está abalado. No entanto, a fidelidade à causa fala mais forte e os mantém unidos, mesmo com as discordâncias.
Em termos de direção, Rafael Conde constrói de forma interessante a traição do cunhado de Zé, Gilberto Prata Soares, que se tornou informante dos militares para identificar membros da Ação Popular Marxista-Leninista (APML). Sem ser expositivo, o diretor encontra maneiras elegantes de mostrar a ação do homem, que utilizava um gravador de voz para conseguir informações; ele foi responsável direto pela prisão de Zé.
Outra cena brilhantemente conduzida é quando Lena é interrogada por policiais sobre a localização do companheiro. Um dos agentes queima a coxa da mulher com cigarro, enquanto o filho dela está com outro policial, a centímetros de distância. De forma discreta, o diretor mantém a criança encoberta em tela pela mãe. A força que ela demonstra para não amedrontar o filho é comovente, além de escancarar o nível de desumanização dos apoiadores da ditadura.
Já o último plano do filme, com Zé nu e ensanguentado depois de ser apanhado pelos militares, é uma das sequências mais fortes do cinema nacional neste ano. É, ainda, um dos poucos momentos de maior violência visual, algo que o filme evita sempre que possível. Vemos o resultado da tortura, mas não a tortura em si, o que é uma abordagem interessante.
Aos 27 anos, Zé morreu depois de 10 dias seguidos de tortura no DOI-Codi do Recife (PE), sem revelar nenhuma informação sobre seus companheiros; literalmente o pior pesadelo de qualquer militar. É uma história que nos mostra o quanto precisamos de mais filmes sobre a ditadura.
Os horrores foram muitos e fica cômodo tratar como algo distante, que não vai mais acontecer. É essencial lembrar que há pouco mais de um ano atrás tinha gente invadindo os Três Poderes e pedindo o retorno dos militares ao poder. Temos de ter ódio e nojo à ditadura e, principalmente, frear os golpistas que estão sempre à espreita.
Nota: 4 de 5.
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