Crítica | Ainda Estou Aqui
Sóbrio, mas extremamente emotivo, filme de Walter Salles é retrato doloroso dos efeitos da ditadura militar nas famílias dos desaparecidos
Representante do Brasil para buscar uma vaga no Oscar de 2025, “Ainda Estou Aqui” é o grande fenômeno desta 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Ingressos esgotados em minutos no aplicativo, confusão na fila presencial, sessão extra, gente na chuva tentando um ingresso físico.
Existe muita ansiedade para conferir o novo longa de Walter Salles, mesmo com a estreia comercial agendada para logo mais, em 7 de novembro. A presença do diretor no evento, ao lado de Fernanda Torres e Selton Mello, impulsionam o interesse. A expectativa por uma indicação ao Oscar é real, tal qual a qualidade do filme.
A obra é uma adaptação do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, que retrata o endurecimento da ditadura militar no início dos anos 70, quando seu pai, o deputado cassado Rubens Paiva, é levado por militares à paisana e desaparece. No entanto, a narrativa tem como foco a mãe do escritor, Eunice Paiva, que também foi levada por militares e ficou 12 dias detida. Quando foi libertada, precisou se reinventar para cuidar dos cinco filhos, ao mesmo tempo que buscava a verdade sobre o desaparecimento do marido.
O trabalho de Murilo Hauser e Heitor Lorega, roteiristas do longa e laureados com o prêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza, é de uma sensibilidade ímpar. O livro de Marcelo Rubens Paiva retrata Eunice quase como uma super-heroína, o que não é um demérito. Afinal, é uma obra sobre memórias e muitas delas remetem a infância do autor; ele era uma criança quando o pai foi levado. Pelos relatos do livro, Eunice nunca chorava na frente dos filhos, servindo como pilar da família.
O roteiro adaptado entende a essência do livro e a respeita, ao mesmo tempo em que “humaniza” essa personagem idealizada. Mas tal visão só é bem-sucedida porque Fernanda Torres entrega uma das melhores atuações de sua carreira. E, certamente, uma das melhores atuações do ano.
A personagem jamais quebra, mesmo na prisão. Todo o transtorno, confusão e insegurança se dão na mente de Eunice. Fernanda Torres consegue transmitir esses sentimentos “apenas” com seu olhar e atuação corporal.
Em determinada cena, que se passa numa sorveteria, temos um dos vários momentos em que Eunice precisa usar de todas as suas forças para não entregar os pontos na frente dos filhos enquanto seu mundo desaba um pouco mais. São segundos de atuação, de microalterações na expressão da atriz, que dão conta de transmitir toda a dor e luta interna da personagem.
Até por conta da trajetória de sua protagonista, “Ainda Estou Aqui” é - e precisava ser - um filme sóbrio. Walter Salles não usa de nenhum maneirismo para retratar os momentos de Eunice nos porões do DOI-CODI, da mesma forma que não cai na armadilha de mostrar Rubens Paiva durante seu “interrogatório”, por exemplo.
Walter Salles sabe respeitar o silêncio quando o mesmo se faz necessário e confia no potencial dramático dos eventos retratados. Quando os militares chegam na casa da família para levar Rubens Paiva, o diretor opta por uma abordagem naturalista, sem trilha sonora. A tensão no ar é latente porque há um esforço tremendo dos pais em tentar tranquilizar os filhos.
A falsa normalidade ganha contornos absurdos (e cruéis) com a permanência dos miliares na casa. Enquanto o marido é levado, Eunice tenta administrar a situação e entender o que está acontecendo. Aqui, Walter Salles e o diretor de fotografia Adrian Teijido mudam completamente a iluminação da casa, que se torna escura e fria, em perfeito contraste com o espírito alegre e cheio de vida que transbordava no local com a presença de amigos da família.
O fato da ditadura brasileira ter sido extremamente diversificada na forma de torturar as vítimas é evidenciada por este filme, que mostra que a tormenta podia ir além da tortura física. O sofrimento de Eunice (e de toda a família) era primeiro pela ausência de Rubens Paiva e, depois, pela incerteza. Os “confrontos” da mulher com as filhas dá a medida do quão devastadora era a situação.
Quando a morte do ex-deputado se estabeleceu como um fato, iniciava-se a busca pela confirmação formal do óbito, por detalhes, pela localização do corpo, pela responsabilização dos culpados. No meio de tanta tristeza, era preciso criar os cinco filhos, sem conseguir acessar, por exemplo, as contas do marido, que não estava nem vivo nem morto de papel passado.
Com saltos temporais para 1996 e 2014, acompanhamos a reinvenção de Eunice: sua formação em direito, o trabalho de referência em direito indígena, a luta pela responsabilização dos crimes da ditadura. Fernanda Torres está em impecável nos dois primeiros segmentos e conta com um elenco talentosíssimo ao seu redor para encenar algumas das cenas mais belas e tristes da história do nosso cinema. Selton Mello também fez por merecer os elogios da imprensa internacional.
A presença de Fernanda Montenegro na reta final é a coroação de um filme que sabe a importância da memória, do peso do passado e da importância de se posicionar. A ditadura brasileira é uma ferida aberta na história do nosso país e, portanto, flertamos tão fortemente e frequentemente com políticos de extrema direita, embalados em figuras religiosas reacionárias (como bem documentado em “Apocalipse nos Trópicos”) e defensoras de um ideal inexistente de família brasileira
“Ainda Estou Aqui” é um lembrete de que não existiu uma só forma de lutar contra a ditadura, algo que o cinema nacional tem evidenciado este ano com obras como “O Mensageiro” e “Zé”. O longa de Walter Salles é mais um elemento desta equação, de apelo universal, pois figuras maternas lidando com o peso do mundo, infelizmente, não são uma raridade.
Nota: 4 de 5.
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